Nunca na história dois países democráticos entraram em guerra direta um contra o outro, diz uma máxima diplomática. A situação da Ucrânia no momento confirma a regra, ainda que evoque eventos passados, nos quais países ocidentais invadiram ditaduras do Oriente Médio. Mas a Ucrânia é diferente.
Quem viveu o 11 de Setembro de 2001, nunca vai esquecer. Aviões cirurgicamente sequestrados e atirados contra simbólicos sites americanos, deixando mais de 3000 mortos em poucas horas. A grande maioria chorou com os americanos, ainda que o sentimento antiamericanista fosse forte em vários cantos do mundo. Quando a poeira abaixou, o apoio à nação golpeada era praticamente irrestrito, num cenário onde havia clara expectativa de uma resposta militar contra países que circunstancialmente serviram de base para o planejamento e treinamento daqueles que perpetraram os atentados.
Sim, desculpas e mentiras foram usadas de pretexto no momento da invasão de Iraque e Afeganistão. E, sim, forças militares muito superiores às locais foram empregadas. A justificativa moral de fundo, no entanto, baseava-se na memória coletiva do 11 de Setembro.
Na Ucrânia, em 2022, não há justificativa moral. Apenas motivos torpes.
Não que se deva rechaçar de todo um fundo de ansiedade em termos de segurança, da elite moscovita e de Vladimir Putin. Mas a história recente russa deve ser levada em consideração.
Putin iniciou para valer sua carreira como líder russo no final dos anos 90, quando levou o país a uma vitória impiedosa na Guerra da Tchetchênia. De lá para cá, se tornou um ditador clássico. E, como dito recentemente por Biden, a operação na Ucrânia é só mais uma edição do playbook, ou modus-operandi clássico de Putin. O mesmo usado na Georgia, em 2008, e na Criméia, em 2014. Com o agravante de que o exército russo se modernizou intensamente na última década, e ganhou experiência em combates na Síria, Bielorrússia, Cazaquistão, etc. Em nenhuma ocasião movido por valores superiores, de paz, etc. O interesse geopolítico russo foi o guia maior em todas as ações. Independente de custos humanos.
Mas, se o mesmo já foi feito antes, por que a Ucrânia é realmente diferente?
Porque Putin nesta segunda-feira dia 21/02 desnudou abertamente suas intenções e visão de mundo. Tudo o que já sabíamos, mas que sempre era negado publicamente por ele, ficou visível na sua longa hora de fala à nação russa. A agressividade e o descaso pela vida e valores alheios foram escancarados. A Ucrânia, repetiu ele várias vezes, é um Estado fracassado, governado por neo-nazistas, que não tem tradição democrática ocidental. E, assim como vários outros estados emancipados da antiga União Soviética, não tem direito de existir independentemente da Rússia.
Quem viu o discurso pôde concluir rapidamente que nunca houve interesse real em negociar diplomaticamente antes da invasão, certeiramente prevista pelos serviços de inteligência ocidental. E meticulosamente executada desde Abril de 2021. O que Putin deixou claro é a disposição de usar força para restabelecer uma ordem regional e global de décadas atrás, quando ele assistiu impotente à queda do Império Soviético. Acontece que Impérios modernos são tipicamente construídos pela força da economia e da tecnologia, e não pelo calibre de tanques de guerra.
A Ucrânia é portanto diferente porque coloca as cartas da ambição imperialista russa na mesa. Às claras. Um país corrupto e patriarcal. Sem liberdade de imprensa e iniciativa. Com desigualdades estruturais internas longe da ordem do dia. Onde guerras pregressas foram usadas para desviar a atenção do público. E que agora busca guerra num vizinho onde os pró-russos não passam de 15% da população. E onde, portanto, é impossível ganhar corações e mentes.
Ademais, a Ucrânia é diferente porque Putin não se dará satisfeito só com a Ucrânia. E a Europa e os Estados Unidos não vão aceitar mais do que a Ucrânia.